Olá pessoal , Saudações!
Gostaria de saber mais informações a respeito dessa possível ordália que o mago negro Paulo Coelho passou.
Seria uma ordália iniciatica da AA? Alguém já teve experiencia parecida??
Um pequeno trecho do relato em sua biografia:
''Ao acordar, na manhã de sábado, Paulo viu no criado-mudo um bilhete de Gisa, que saíra mais cedo e prometia voltar logo. Ao passar os olhos pela primeira página do Jornal do Brasil que fora deixado sob a porta de entrada, a data impressa sob o cabeçalho chamou sua atenção: fazia exatamente dois anos que conhecera Raul - e que sua vida virara de pernas para o ar. Tomou café, acendeu um cigarro, deu uma espiada pela janela, de onde era possível ver o sol batendo na calçada, lá embaixo, e foi até o quarto vestir uma bermuda para a caminhada diária de uma hora. Sentiu na casa um leve cheiro de queimado, vistoriou as tomadas e os eletrodomésticos e não encontrou nada errado. Ao dar dois passos percebeu que o cheiro voltava, agora mais forte. Não, não. Aquilo não era cheiro de combustão elétrica, mas de algo que lhe parecia a cada segundo mais familiar. Sentiu um frio na barriga quando a memória o transportou para o lugar onde sentira o mesmo cheiro que agora invadia seu apartamento: a sala de cadáveres da Santa Casa de Misericórdia, que freqüentara diariamente por vários meses, recolhendo dados sobre os mortos para a página de obituário do Globo. Era o cheiro macabro das velas que pareciam estar permanentemente acesas, iluminando no velório da Santa Casa a desencarnação daqueles mortos. A diferença é que o odor que empesteava tudo à sua volta era tão forte que parecia vir de cem, de mil velas queimando ao mesmo tempo. Ao abaixar-se para amarrar os tênis, teve a impressão de que o chão de tacos de madeira se inclinava para cima, aproximando-se perigosamente de seu rosto. Eram suas pernas que haviam bambeado inesperadamente, como se ele tivesse sido acometido de uma vertigem muito forte, inclinando o peito para a frente. Quase se estatelou no chão. Com a intensificação da vertigem, tentou lembrar se havia comido algo estranho, mas não, não havia sido nada assim: na verdade, não sentia náuseas nem vontade de vomitar, apenas era chacoalhado por uma voragem que parecia tomar conta de tudo à sua volta. Junto com os surtos de tontura, que iam e vinham, percebeu que o apartamento estava tomado por uma bruma escura, como se o sol sumisse de repente e nuvens cinzentas invadissem a casa. Por um instante implorou que estivesse vivendo o momento mais temido pelos usuários de droga - LSD. Mas nem isso era possível. Fazia muito que não punha na boca um pedacinho sequer de LSD. E nunca ouvira falar que maconha ou cocaína tivessem levado alguém a um inferno como aquele.
Tentou abrir a porta e sair para a rua, mas o medo o paralisava. Lá fora podia estar pior do que em casa. Agora, além das vertigens e da fumaça, ouvia barulhos assustadores, como se alguém ou alguma entidade estivesse quebrando tudo à sua volta - mas as coisas continuavam em seus lugares. Aterrorizado e sem forças para reagir, viu suas esperanças renascerem quando o telefone tocou. Pediu a Deus que fosse Euclydes Lacerda, o Frater Zaratustra, este sim, alguém capaz de pôr um fim àquele martírio. Ergueu o fone do gancho mas quase desligou ao se dar conta de que estava invocando o santo nome de Deus para falar com um discípulo do Diabo. Antes fosse Euclydes: quem o chamava era a amiga Stella Paula, que ele também recrutara para a O. T. O. Em prantos e tão apavorada quanto ele, a garota ligara para pedir socorro, pois seu apartamento estava sendo tomado por tufos de fumaça negra, um forte cheiro de algo em decomposição e outros miasmas sufocantes. Agora ele é que passou a chorar de forma incontrolável. Desligou o telefone e se lembrou do recurso que usava quando exagerava no consumo de maconha ou cocaína: foi à geladeira e bebeu vários copos de leite, um atrás do outro, e depois enfiou a cabeça embaixo da torneira da pia do banheiro, deixando escorrer a água fria. Nada, nada. O cheiro dos mortos, a fumaça e as vertigens continuavam, assim como o barulho de quebradeira, tão forte que o obrigava a tapar os ouvidos com as mãos para diminuí-lo. Só então, como se sua memória espanasse um velho hieróglifo, começou a entender o que se passava. Após romper por completo seus laços com a fé cristã, ele passara os últimos anos trabalhando com energias negativas em busca de algo que nem mesmo Aleister Crowley conseguira: encontrar-se com o Demônio. O que acontecia naquela manhã de sábado era o que Frater Zaratustra chamava de "refluxo de energias mágicas": o que ele tanto pedira em invocações e banhos em espadas-de-são-jorge tinha sido atendido. Paulo estava cara a cara com o Demônio. Teve vontade de se atirar pela janela, mas saltar do quarto pavimento podia significar arrebentar-se no chão, sofrer terrivelmente, talvez não poder mais andar, mas mesmo assim não morrer. Chorando como um bebê abandonado, com as mãos em concha sobre os ouvidos e a cabeça enterrada entre os joelhos, ele se lembrou de fragmentos das ameaças que padre Ruffier trovejava desde o púlpito da capela do Colégio Santo Inácio. Com nitidez meridiana viu os braços curtos e grossos do religioso gaúcho levantados para o céu em meio às imprecações:
[... ] Estamos no inferno! Aqui só se vêem lágrimas e só se ouve o ranger de dentes do ódio de uns contra os outros. [... ] Enquanto choramos de dor e de remorso, o demônio sorri um sorriso que nos faz sofrer ainda mais. Mas o pior castigo, a pior dor, o pior sofrimento é não termos nenhuma esperança. Estamos aqui para sempre. [... ]E o demônio dirá: meu caro, seu sofrimento ainda nem começou! Era isso, ele estava no inferno - um inferno muito pior do que padre Ruffier prometera e ao qual parecia condenado solitariamente. Sim, porque fazia muito tempo que aquilo começara - duas horas? Três? Ele perdera a noção de tempo - e Gisa não dava sinal de vida. Teria havido alguma coisa com ela? Para não continuar pensando naquilo, passou a contar os livros que tinha em casa, depois os discos, os quadros, as facas, as colheres, os garfos, pratos, pares de meia, as cuecas... Quando chegou às últimas peças, começou tudo de novo, contando livros, discos... Estava agachado sob a pia da cozinha, com as mãos cheias de talheres, quando Gisa chegou. Tão estremunhada quanto ele, com tremores de frio e batendo dentes, a namorada perguntou o que estava acontecendo, mas Paulo não sabia. Ela irritou-se: - Como não sabe? Você sabe tudo! Abraçados, os dois se ajoelharam no chão da cozinha e puseram-se a chorar. Ao se ouvir confessando a Gisa que estava com medo da morte, Paulo viu renascer os fantasmas do Colégio Santo Inácio. "Você está com medo de morrer", gritara-lhe uma vez padre Ruffier, na frente dos colegas, "e eu estou indignado com a sua covardia. " Gisa também estava envergonhada ao ver acovardado daquele jeito o homem que dias antes era o sabe-tudo, o machão que a induzira a se meter com os desatinados bruxos da O. T. O. No meio daquele pandemônio, contudo, pouco importava a Paulo a opinião que tivessem a seu respeito o padre, a namorada, os pais. A única verdade é que não queria morrer e muito menos entregar a alma ao Demônio. Tomou coragem e sussurrou no ouvido de Gisa: - Vamos procurar uma igreja! Vamos sair daqui direto para uma igreja!
A militante de esquerda parecia não reconhecer o namorado: - Igreja? Mas o que você vai procurar numa igreja, Paulo? Deus. Ele queria uma igreja para pedir a Deus que o perdoasse por ter duvidado de Sua existência e pusesse fim àquele sofrimento. Arrastou Gisa até o banheiro, abriu o registro de água fria do chuveiro e acocorou-se no chão, ao lado da namorada. O mau cheiro, a nuvem e os barulhos continuavam. Paulo pôs-se a rezar em voz alta todas as orações que conhecia - ave-maria, pai-nosso, salve-rainha, credo até que ela passou a acompanhá-lo. Eles jamais se lembrariam de quanto tempo ficaram ali, mas ambos estavam com as pontas dos dedos das mãos azuladas e enrugadas pela água quando Paulo se levantou correndo, foi à sala e pegou na estante um exemplar da Bíblia. De novo sob a água, abriu o livro sagrado numa página ao acaso e deu com o versículo 9, capítulo 22, de são Marcos, que ele e a namorada passaram a repetir, como um mantra, sob o chuveiro: Eu creio, Senhor. Ajudai minha incredulidade... Eu creio, Senhor. Ajudai minha incredulidade... Eu creio, Senhor. Ajudai minha incredulidade... As seis palavras foram repetidas pelos dois em voz alta como um ditirambo centenas, talvez milhares de vezes. Paulo renegou e abjurou, também em voz alta, suas ligações com a O. T. O., com Crowley e com todos os demônios que pareciam ter libertado naquele sábado. Quando a paz voltou, a noite entrava pela janela do apartamento. Paulo estava se sentindo um farrapo - física e emocionalmente.'''